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segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Glass Harp


Só para provocar o chifrudo, aquele que se intitula “o pai do rock”, Deus costuma privilegiar determinados músicos com um talento excepcional e alistá-los na legião de missionários que espalha a palavra de Seu filho por aí. Realmente, o rock cristão não costuma empolgar os adeptos do lado negro do rock’n’roll, mas fico imaginando o tinhoso querendo seduzir um ou outro desses talentos não só para fazer desfeita ao rival, mas porque gostaria muito de tê-los no som ambiente que embala os cômodos quentinhos de sua morada.

Philip Tyler Keaggy, ou Phil Keaggy, guitarrista do power trio norte americano Glass Harp, é uma dessas figuras que valeriam qualquer esforço satânico. Não que sua vida tenha sido virtuosa a ponto de merecer um texto no verso de um desses santinhos que se distribuem nas igrejas. Muito pelo contrário: Phil foi uma típica criança americana nos anos 50 e um clichê de adolescente nos 60.

Nascido em 1951 na cidade de Youngstown, Ohio, aos quatro anos de idade perdeu metade do dedo médio da mão direita em um acidente com a bomba d’água que abastecia a casa da fazenda onde morava. E crescer com nove dedos nas mãos não encoraja ninguém a empunhar uma guitarra, não é mesmo? Por isso Phil pediu ao pai uma bateria no seu aniversário de 10 anos. Ao invés disso, ganhou uma guitarra Sears Silvertone e penou até aprender a tocá-la. Poucos anos depois trocou por uma Stratocaster e lá pela metade dos anos 60 já tocava nas bandas de garagem locais e tinha como concorrente outro futuro guitar hero: Joe Walsh (James Gang, Eagles).

Em 1965, na escola, Phil começou sua amizade e parceria com o baterista, guitarrista e compositor John Sferra. Ao voltar cheio de idéias de uma curta estadia na Califórnia com a banda The New Hudson Exit, em 1968, Phil convidou John e o baixista Steve Markulin para formarem o Glass Harp. Passaram então a rodar o circuito colegial e de clubes da região de Youngstown, ganhando entrosamento e uma certa notoriedade, além de gravarem várias demos. Uma delas, “Where Did My World Come From” acabou virando um single lançado pelo selo United Label.

Glass Harp, Human Beinz, Raspberries e o James Gang de Joe Walsh eram as bandas mais populares do nordeste de Ohio nessa época. E após a saída de Markulin para se juntar ao Beinz, o Glass Harp recrutou o baixista e flautista Daniel Pecchio para o seu lugar. A crescente fama do grupo, no entanto, começou a trazer problemas para seus membros que, ainda no final da adolescência, tiveram que abandonar a escola e estudarem por correspondência para darem conta dos compromissos. O ano era 1969 e eles não apenas ganharam uma edição da “Battle of the Bands” da região, como também a atenção de um dos jurados que estava lá como olheiro do produtor Lewis Merenstein, votado na época como produtor do ano pela Rolling Stone pelo seu trabalho no disco Moondance, de Van Morrison.

Bastou uma ouvida nos demos e uma olhadinha na banda ao vivo para convencer Merenstein a apadrinhar o grupo, oferecendo inclusive um contrato para alguns discos no prestigiado selo Decca. Bom, eu não tenho os ouvidos de um produtor musical nem sou músico, minha ignorância musical também me impossibilita afirmar se o Phil Keaggy glissandeia, arpejeia ou simplesmente embuceteia na guitarra, mas pelo que a gente lê de quem ouviu o Glass Harp ao vivo nesses idos de 69 e comecinho dos 70, os garotos impressionavam. A guitarra ágil de Keaggy soava carregada de lirismo e a cozinha de Sferra e Pecchio não era apenas competente, era versátil e poderosa. Em suma, eles prometiam.

O entusiasmo pela banda era tamanho que um gaiato qualquer chegou a espalhar um boato de que Jimi Hendrix, ao ser entrevistado em um programa de TV ou nas páginas da Rolling Stone, teria afirmado que Phil Keaggy era o melhor guitarrista do mundo. Essa historinha corre solta até hoje, mesmo depois dos vários desmentidos de Keaggy, já que Hendrix dificilmente conhecera a banda ao vivo e seu disco de estréia, embora gravado no Electric Lady Studios, de Jimi, em Nova York, e produzido por Merenstein, ficaria pronto duas semanas após a morte do guitarrista.

De toda forma, antes de gravarem esse disco, um fato influenciaria e muito o som do jovem guitarrista e de sua banda: a mãe de Phil, grande entusiasta e apoiadora incansável do Glass Harp, morreu em fevereiro de 1970. Keaggy tinha apenas 19 anos e havia sido um adolescente nômade em função de sua vida de músico, mas muito apegado à família. Como músico em plena era hippie, começava a se envolver com drogas e todos os excessos do psychedelic way of life. Inconformado com a morte da mãe e confortado pelas palavras de fé de uma de suas irmãs, fez uma reflexão de vida e resolveu se converter ao cristianismo, usando a música como expressão de sua crença.

1970 | GLASS HARP

01. Can You See Me
02. Children's Fantasy
03. Changes
04. Village Queen
05. Black Horse
06. Southbound
07. Whatever Life Demands
08. Look In The Sky
09. Garden
10. On Our Own
11. Voice Of God Cry Out (Previously Unreleased)

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Não pense com isso que o homônimo LP de estréia do Glass Harp seja trilha sonora de missa de domingo. Longe disso, mas que tem o dedo do Homem lá, isso tem. Para começar, é belíssimo, com harmonias tão ricas que nem o mais iluminado dos beatos conseguiria descrever. No entanto, é power rock. E dos bons, daqueles de arrepiar. O que dão um pouco de bandeira são as letras: “Can You See Me” e “Look In The Sky” são verdadeiros hinos de fé e mesmo as músicas compostas por Sferra ou Pecchio são carregadas de soul. A produção magnífica de Merenstein, recheada por belíssimas intervenções de cordas e pontuada aqui e ali pela flauta etérea de Pecchio, chega a ser deslumbrante. E olha que nem citei ainda a guitarra de Keaggy, lírica, comovente, inventiva, muitas vezes celestial. O álbum é foda.

O Glass Harp é hoje considerado um dos pioneiros do rock cristão contemporâneo, mas nem por isso seus membros eram coroinhas de plantão. Ao vivo, esse power trio era diabólico, na mais pura tradição creamniana, com ferozes jams que se prolongavam acima dos 30 minutos e toneladas de peso martelando os ouvidos. Como contratados do selo Decca, tocaram do Fillmore ao Winterland Ballroom e abriram para Yes, Alice Cooper, Traffic, Chicago, Grand Funk Railroad e mais um monte de super bandas. E convenhamos que não dava para ser muito bonzinho ao encarar a platéia de tia Alice.

1971 | SINERGY

01. Can You See Me
02. Children's Fantasy
03. Changes
04. Village Queen
05. Black Horse
06. Southbound
07. Whatever Life Demands
08. Look In The Sky
09. Garden
10. On Our Own
11. Voice Of God Cry Out (Previously Unreleased)

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Em 1971, com seus integrantes na faixa dos 20 anos apenas, o Glass Harp já prometia ser the next big thing, carregando de tinta a imprensa musical e caindo nas graças do público americano e dos críticos, impressionados com a ousadia camaleônica de suas apresentações ao vivo. Seu segundo disco, Synergy, ainda mantinha as estruturas harmoniosas da estreia, mas desta vez arriscava um pouco de folk, abusava do hard rock e se aventurava no progressivo. As músicas “Mountains”, “Never Is A Long Time” e “One Day At A Time” devem ter feito muito big star procurar seu médico atrás de uma boa receita de analgésico para dor de cotovelo.

Reunidos com Merenstein e os executivos da Decca, começaram a traçar planos para o primeiro registro ao vivo da banda, que deveria ser lançado como o próximo LP. A oportunidade chegou quando o Glass Harp foi convidado para ser a banda de abertura do concerto do Kinks, a ser realizado em 1972 no Carnegie Hall. Três verdadeiros desafios para três garotos: tocar no maior templo da música americana, abrir para uma das mais lendárias bandas do rock inglês e reverter a costumeira indiferença do público novaiorquino. O que se ouve dessa gravação, tirando os primeiros minutos de natural nervosismo, é uma verdadeira celebração ao rock’n’roll, quase uma hora de energia pura, incontida, impiedosa. Cinco músicas apenas no set list: a poderosa “Look In The Sky”, a paquidérmica “Never Is A Long Time”, a adaptação do clássico hino gospel “Do Lord”, a pirotécnica “Changes” e a épica “Can You See Me”, esta última com 30 minutos de improvisos fantásticos e um medley da então inédita “David And Golliath” e “One Day At A Time”. Uma merecida ovação da platéia encerra o show.

1972 | IT MAKES ME GLAD

01. See Saw
02. Sailing On A River
03. La Da Da
04. Colt
05. Sea And You
06. David & Goliath
07. I'm Going Home
08. Do Lord
09. Song In The Air
10. Let's Live Together
11. Little Doggie (Previously Unreleased)

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Inexplicavelmente, esse registro só viria a público na forma de CD vinte e cinco anos depois. No lugar dele foi lançado em 1972 o terceiro álbum de estúdio da banda: It Makes Me Glad. Um disco mais contemplativo, mas ainda assim maravilhoso. Ele contém as três músicas que os fãs apelidaram “The Trilogy”: uma suíte épica de 10 minutos composta das músicas “David and Golliath”, “I’m Going Home” e “Do Lord”.

Logo após o lançamento desse LP e no auge da fama, Phil Keagy decide abandonar a banda e abraçar de vez o gospel, iniciando uma carreira solo coroada com algumas dezenas de álbuns, prêmios e indicações para o Grammy de melhor álbum na sua categoria. A banda ainda tentou seguir em frente, recrutando o guitarrista Tim Burks e o violinista Randy Benson. O som do grupo enveredou para o progressivo, mas nenhum registro dessa nova fase viu a luz do dia. O grupo encerrou de vez suas atividades em 1973. Os três membros originais da banda se reuniram novamente em 1997 e desde então têm lançado CDs e excursionado regularmente. Vários vídeos de suas novas apresentações podem ser vistos no YouTube.

1997 | LIVE AT CARNEGIE HALL 1972

01. Look In The Sky
02. Never Is A Long Time
03. Do Lord
04. Changes
05. Can You See Me




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