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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Lobão


TRILOGIA DE AUTO-AFIRMAÇÃO DE UM MÚSICO POPULAR BRASILEIRO

Por | Marcus Marçal

Lobão bradava desde 95 que estava iniciando uma trilogia, ao mesmo tempo em que assumia o papel político de “músico popular brasileiro” como sua condição única de existência no espectro da arte feita no Brasil. Ele considera que se levantasse a bandeira do Brock seria apenas limbo cultural, representando um subgrupo no Brasil e sem nenhuma expressão no exterior.

Portanto, a auto-afirmação como MPB foi necessária para situá-lo numa perspectiva histórica da música feita no Brasil contemporaneamente. Para isso, Lobão percebeu que não havia como abrir mão do cunho da regionalidade em seu trabalho. Entretanto, isso não significava apenas apenas lançar mão de saídas fáceis como utilizar baticuns estereotipados ou outras manifestações folclóricas. Para reciclar as mais variadas referências estéticas culturalmente enraizadas, Lobão também se apropriou do lixo cultural a nós desde sempre imputado, num amálgama que retrata “a busca de identidade de um artista em crise de identidade em um país em crise de identidade” – como ele mesmo afirma.

Avaliando as motivações que o levaram a implementar uma trilogia de desmistificação da MPB, ele declarou: “ ‘Agriculturalmente’ falando, percebi que isso poderia ser o humus. E comecei a verificar que o movimento de abarcar o problema era não ter preconceito com o que tinha acontecido no passado e ver a beleza daquilo, o anacronismo e as arestas que aquilo possui com o atual. Então gravei três discos onde fiz uma varredura partindo ‘daqui para o todo’, mas sempre tendo como referência uma coisa regional”, arremata.

“AURORA, NINGUÉM MAIS CHORA POR MIM...”

O primeiro passo de Lobão rumo à auto-afirmação como músico popular brasileiro se deu no multi-facetado Nostalgia da Modernidade, trabalho que reflete a crise de identidade que assolava o cantor no período de incubação de sua trilogia.

Lançado em 95, o disco soa propositalmente antigo e nele o compositor transitou com propriedade por gêneros díspares entre si: disco inferno, blues, maracatu, samba, canções camerísticas típicas de festivais da canção; e também músicas que já apontavam a direção final com a qual se caracterizaria o terceiro álbum da série. Caso de “A Queda”, música-síntese que abriu a trilogia e incorporou todas as referências que seriam utilizadas nos três discos: a poesia forte, a orquestração de cordas e os loops inseridos por meio de programação de bateria eletrônica.

Mas na primeira etapa da trilogia, Lobão se notabilizou por reverenciar as tradições da MPB, com destaque para as camerísticas “Dilema”, “A Hora da Estrela” e “A Flor do Vazio”. Também vale ressaltar a presença de sambas ortodoxos, tais como a faixa-título “Nostalgia da Modernidade” e “Luz da Madrugada” – esta última foi o ponta-pé inicial da empreitada, a primeira música composta desde o exílio auto-impingido. Quando a compôs, Lobão se disse pertencido a uma cultura a qual reverencia e obtém o acesso à “inteligentsia” que rege a MPB.

Heterogêneo, mas esquizofrênico, segundo o próprio autor, o álbum é resultado de um período em que não compôs absolutamente nada. Nostalgia da Modernidade vendeu 21.000 cópias e Lobão foi ejetado de sua gravadora, a Virgin Records, por “inviabilidade comercial”.

1995 | NOSTALGIA DA MODERNIDADE

01 | A Queda
02 | O Jogo Não Valeu
03 | A Flor do Vazio
04 | Samsara Blues
05 | Mal de Amor
06 | Luz da Madrugada
07 | Coração Aberto
08 | Dilema
09 | O Diabo é Deus de Folga
10 | Eu Não Embarco Nessa Onda
11 | A Hora da Estrela
12 | Sem Sono Lobão
13 | Dé Dé Dé Dé Déu
14 | Nostalgia da Modernidade

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“A CERTEZA DA CERTEZA FAZ O LOUCO GRITAR...”

A trilogia prosseguiu em 97, com o lançamento de Noite. Cult desde o lançamento, Lobão se obrigou a refazer o disco de uma forma semi-artesanal após a desventura de uma tentativa anterior de orçamento astronômico – o que levou a Universal, sua nova gravadora, a deixá-lo “na geladeira” por seis meses.

Produzido por Marcelo Sussekind, o álbum original foi abortado (segundo o cantor, parecia Whitesnake) e a solução foi recorrer à praticidade das programações de drum machine.

Homogêneo, tachado equivocadamente pela unanimidade como techno, Noite é um álbum soturno que transborda poesia forte. Destacam-se as baladas gélidas “Sozinha Minha” e “Do Amor”; e as virulentas “O Grito”, “A Véspera” e “Samba da Caixa Preta”, a antítese do “Samba do Avião” (Tom Jobim), composta no auge do afã da candidatura da “cidade maravilhosa” à sede das Olimpíadas de 2004.

Noite vendeu 40.000 cópias e soa propositalmente futurista. Apesar da boa repercussão, pouco após o lançamento Lobão foi “saído” da Universal por rejeitar o “convite” para participar da campanha contra a pirataria promovida pela Associação Brasileira dos Produtores de Disco (ABPD). Mas o velho lobo não iria deixar barato esse episódio.

1998 | NOITE

01 | A Noite
02 | O Grito
03 | Sozinha Minha
04 | A Véspera
05 | Hora Deserta
06 | Meu Abismo, Meu Abrigo
07 | Samba da Caixa Preta
08 | Me Beija
09 | 24 Horas
10 | Na Poeira do Mundo
11 | Do Amor

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“EU SOU NADA E ISSO ME CONVÉM, O SUB DO MUNDO – O QUE ME DETÉM?”

Tido como “persona non gratta” no meio artístico, Lobão por pouco inviabilizou sua trilogia. O compositor era assediado pelos grandes selos, sempre recebendo propostas para gravar um álbum acústico, regravar Cazuza ou Renato Russo – o que quase aconteceu. Procurou selos independentes e se surpreendeu ao receber o mesmo tratamento.

Começa a fazer shows pelo Brasil afora, apresentando desplugado músicas que considerava relevante – inclusive faixas que estariam presentes na terceira etapa da trilogia.

Alegou ter recusado uma proposta indecente da Telefônica, que queria veicular o seu maior hit, “Me Chama, num comercial para TV. Assim, o compositor valorizou seu trabalho, reiterando o discurso contundente que vinha aguçando com o passar dos anos. Mas o primeira virada de mesa se dá num momento de suposta calmaria. Na ocasião do Tributo Ao Tim Maia, realizado no Metropolitan em meados de 99, Lobão foi convidado a participar do evento e esculhambou, num discurso histórico, a “inteligentsia” da música brasileira. Os mesmos que, segundo o cantor, compactuaram espuriamente com o mecenato da indústria fonográfica ao endossarem a campanha anti-pirataria promovida pela ABPD – todos presentes no evento.

Daí em diante, passou a reinvindicar a numeração dos CDs produzidos no Brasil como forma de combater a pirataria oficial, segundo ele, promovida pelas próprias gravadoras. Vale ressaltar que esta é uma antiga questão de classe, com o histórico do ditador Médici ter revogado lá pelos anos 70 um decreto que instaurava a numeração das cópias dos discos brasileiros. Com essa p*rrada contra a cultura brasileira, o ditador se despediu do poder em 1974.

Realizado pela Som Livre, braço da Rede Globo no ramo fonográfico, Lobão só foi convidado ao evento por estar negociando um “best of ao vivo” a ser lançado pela gravadora, como ele mesmo declarou: “Não tinha a menor interesse em participar, fui lá para esculhambar, pra fazer um ‘atentado terrorista’. Queria falar uma coisa séria para um número grande de pessoas e estava nervoso, excitado – ‘vou cometer um crime, um assassinato, um atentado’... E o que aconteceu lá aconteceu passou desapercebido. Ninguém comentou nada, o que foi a demonstração que aquilo foi realmente grave”.

Por outro lado, um dos cabeças da ABPD caiu do posto logo em seguida. Se estivesse vivo, com certeza, Tim Maia – outra persona non grata no métier, enquanto vivo – se sentiria lisonjeado com a homenagem, confirma o próprio Lobão: “A causa mortis dele foi a Som Livre, a Globo, que o mataram de desgosto. E, um anos depois, essa mesma Som Livre estava lá gravando, sem a menor vergonha na cara, os hits do Tim Maia e pedindo que viéssemos de azul. Este tributo foi o primeiro momento em que me manifestei como inimigo confrontual”, ironiza.

EL DESDICHADO

Eu sou o Tenebroso, - o Viúvo, - o Inconsolado,
O Senhor de Aquitânia à Torre da abulia:
Meu único Astro é morto, o meu alaúde iriado
Irradia o Sol negro da Melancolia.

Na noite Sepulcral, Tu que me hás consolado,
O Posílipo e o mar Itálico me envia,
A flor que tanto amava o meu ser desolado,
E a treliça onde a Vinha à Roseira se alia.

Sou Biron, Lusignan?... Febo ou Amor? Na fronte
Ainda o beijo da Rainha rubro me incendeia;
Eu sonhei na Caverna onde nada a Sereia...

E duas vezes cruzei vencedor o Aqueronte:
Modulando na cítara a Orfeu consagrada
Os suspiros da Santa e os arquejos da Fada.


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Impossibilitado de trabalhar como gostaria, Lobão percebeu que a saída para viabilizar o desfecho de sua trilogia era lançar-se como um artista independente. O cantor quase sucumbiu à tentação de gravar o tal do “best of acústico”, mas teve um insight ao deparar-se nas bancas com um discos de piadas do Ary Toledo. E chegou à conclusão de que aquele formato seria perfeito para um lançamento de cunho editorial a ser vendido nas bancas de jornais e livrarias de todo o Brasil.

Assim foi concebido o projeto Lobão Manifesto, viabilizado pelo espírito empreendedor de jovens investidores da Bolsa de Valores que, na última hora, disponibilizaram o aval financeiro para que o cantor realizasse a sua empreitada. Outro auxílio inestimável, foi a adesão do advogado Nehemias Gueiros Jr. – o sustentáculo jurídico da empreitada.

MANIFESTO DO NADA NA TERRA DO NUNCA
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Lobão Manifesto é um trabalho repleto de referências a outros autores, tanto no âmbito musical quanto textual. O compositor vislumbrou essa possibilidade ao deparar-se com o poema “Wasteland”, de T.S. Elliot – um poema enorme composto no final da Segunda Guerra no qual o autor faz uso de samples de vários outros autores.

Esse caráter intertextual fica claro no encarte do disco. Segundo Lobão, essa característica facilitou a localização geográfica dos trânsitos culturais que os três discos permitem dentro do espectro da música popular brasileira. “É um disco muito complexo onde quanto mais a pessoa tiver informação externa, mais vai poder degustá-lo porque ele é cheio de citações e apontamentos – como se fosse um mapa de um tesouro”, indica.

“A Vida é Doce” é o primeiro álbum numerado feito no Brasil e segundo, o autor é um disco “ipanemense”, que sintetiza os dois discos anteriores. Um dos destaques vai para a faixa-título, a primeira composição composta por um sóbrio Lobão, mal-sucedida no dia anterior. Antes disso, tudo quase vai por água abaixo após uma malfadada mistura de cachaça com remédios para dormir que o deixou em coma por quinze dias. Daí veio a necessidade do cantor em se perceber capaz de compor desprovido de quaisquer “aditivos”.

No disco, finalmente concretizou a junção entre a zona norte e a zona sul, ensaiada em vários momentos de sua carreira. Caso de “El Desdichado 2”, um desdobramento intertextual de um poema do francês Gerard Nerval; e também uma homenagem póstuma ao seu amigo Alcir Explosão – “o todo-poderoso baterista da Mangueira”, como o próprio se refere ao amigo morto em decorrência de um bala perdida num confronto entre polícia e traficantes.

Apontado pela crítica como um trabalho alusivo ao trip hop, segundo o autor o álbum apresenta bossa-novas pervetidas, “influenciadas mais pelo Nine Inch Nails do que pelo João Donato ou Tom Jobim”. A trilogia se encerra com a instrumental “Amanhecendo Na Lagoa”, uma canção é aparentada de “Do Amor” (do anterior Noite, canção que cita Jobim e caracteriza a ligação entre os discos) – que reflete bem o exílio auto-imposto pelo compositor no decorrer da sua empreitada.

Ao concretizá-la, Lobão inscreve definitivamente seu nome como autor na música popular brasileira contemporânea. Atualmente, no Brasil, nada é mais rock ou MPB ortodoxa quanto o trabalho contido nesses três discos – que reunidos, tornam-se um artefato híbrido que reitera o calejado jargão “pedras que rolam não criam limo”.

1999 | A VIDA É DOCE

01 | El Desdichado II
02 | Universo Paralelo
03 | Pra Onde Você Vai
04 | Tão Menina
05 | Vida é Doce
06 | Uma Delicada Forma de Calor
07 | Tão Perto, Tão Longe
08 | Ipanema No Ar
09 | Vou Te Levar
10 | Mais uma Vez
11 | Amanhecendo Na Lagoa

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