Sebastião Rodrigues Maia, nosso saudoso e louvável Tim Maia, teve uma carreira repleta de polêmicas, excessos, irresponsabilidade, mas muita, muita genialidade, sendo o top mind quando se fala em soul/black music/funk/disco entre outros vários gêneros encontrados em sua vasta e riquíssima discografia, mas aqui não falaremos de seu cartel discográfico, e sim, de uma fase que ele renega, mas que é muito importante na carreira dele e de uma maneira músical, sendo irrepreensível a qualidade das composições, mesmo que suas letras sejam um louvor, as canções são muito bem feitas.
Nossa história começa em 1974, nosso Síndico já tinha 4 discos homônios gravados, um sucesso grande com clássicos como "Não quero Dinheiro", "Gostava tanto de você", "Azul da cor do Mar", "Você" entre vários outros. Foi na casa de seu amigo Tibério Gaspar, que tinha um pai adepto a Cultura Racional, que Tim teve o primeiro contato com um livrinho do "Universo Racional". Depois desse primeiro contato, o cantor decidiu conhecer a seita, raspar a cabeça e vestir branco. Sem gravadora, o cantor já havia criado o selo Seroma (cujo nome vinha das iniciais de Sebastião Rodrigues Maia). Após aderir ao movimento, resolveu modificar todas as letras que vinha gravando, trocando-as por louvores ao Racional Superior. Largou as drogas, as quais era usuário (nunca confirmou, muito menos negou o uso em excesso). Tim posou para fotos sem a famosa barba e bigode, com o cabelo, outrora Black Power, cortado à máquina, tendo por trás um enorme poster de “seu” Manoel, o “mestre de branco”. Com seu lado polêmico sempre afiado, começou a dar declarações atacando antigos amigos, como Raul Seixas, a quem dizia “charlatão”, devido ao seu envolvimento com o mago Aleister Crowley. Diz a lenda que nessa época Tim haveria dado uma grande quantidade de seus discos para seu sobrinho Ed Motta, que pelo visto, foram muito bem aproveitados.
Aqui vou tentar sintetizar a grosso modo, de maneira bem superficial, baseada em artigos da internet essa cultura. A "Cultura Racional" foi fundada por Manoel Jacintho Coelho, considerado pela Cultura Racional como o Racional Superior da Terra, na cidade do Rio de Janeiro, em 1935, no bairro do Méier no centro espírita Tenda Espírita Francisco de Assis, sendo divulgada fortemente a partir de 1970. Tem uma bibliografia que conta com 1000 livros, que prometem desvendar todo o mistério do mundo.Segundo conta um dos livros o fundador, em 04/10/1935, recebeu uma ordem de fechar o centro espírita porque havia chegado ao mundo uma nova era, chamada Fase Racional, a fase do desenvolvimento do raciocínio, localizado na glândula pineal.
Na parte filosófica da coisa, segundo os adeptos, Cultura Racional é o conhecimento da origem do ser humano até sua completa evolução,tudo isto através das mensagens do Racional Superior, um ser extraterreno, publicadas nos livros "Universo em Desencanto" (mil livros já citados acima, divididos em 1°- Obra, composta de 21 volumes, 2°- Réplica, composta de 21 volumes, 3°- Tréplica, composta de 21 volumes, 4°- Histórico, composta de 934 volumes e 5º - Amarelões, composta de 3 volumes editados entre 1935 e 1938). Segundo o movimento, o objetivo Racional seria ligar o ser humano ao seu Mundo de Origem, o mundo racional, pelo desenvolvimento do raciocínio, que é obtido no ler e reler os livros "Universo em Desencanto". Segundo os mesmos a Cultura Racional é "a cultura do desenvolvimento do raciocínio, do mundo que deu origem a este em que habitamos, por isso não é seita ou doutrina, nem tampouco é ciência, filosofia, nem espiritismo. E também não precisa de igreja, sinagoga, mesquita ou casa de pregação. Esta cultura não ataca, não ofende, não humilha, é a favor de todos. Interessa a toda a humanidade, pois é o conhecimento de onde viemos e para onde vamos, como viemos e como vamos, por que viemos e por que vamos".
A Cultura Racional fundamenta a origem do universo, que os seres chamados de habitantes do Mundo Racional (corpos de energia pura, limpa e perfeita) estavam na Planície Racional e viviam em harmonia, até que alguns resolveram experimentar uma parte da Planície a qual não estava pronta para entrar em progresso, o que acarretou um processo de degeneração. Nesse processo, começou a ocorrer perda de virtudes (energia com poder de animação e criação) e assim todos foram descendo, uns mais outros menos, até que fosse formado o Universo. Sendo assim, segundo esse fundamento, a missão do animal Racional (ser humano) seria a de retornar ao seu estado original de equilíbrio, pureza e perfeição, se aperfeiçoando através de uma progressão.
Explicado um pouco dessa filosofia, vamos ao que interessa. O motivo pelo qual Tim entrou na seita ainda é duvidosa, especula-se que foi por querer se livrar das drogas, ou se foi pelo desejo de entrar em contato com discos voadores, ou até uma fase difícil em sua vida, já que Geisa, mulher com qual teve um filho e que morava com ele, tinha o deixado. Pode ser que em um momento de desespero ele buscou uma ajuda espiritual.
No som encontrado nessas obras, vemos muita riqueza instrumental, de arranjo e genialidade, que aconteciam nos ensaios e as gravações. Tim Maia fez questão de converter todo o conjunto e vários de seus amigos, chegando a barrar os visitantes que não iam vestidos de branco em sua residência. Os músicos da sua famigerada banda Vitória Régia, foram influenciados a entrar na seita estudando-a, seja por crença própria, ou apenas para manter o emprego. No estúdio, Tim se revezava em vários instrumentos, como flauta, violão, guitarra e bateria. Músicos como Beto Cajueiro, Robson Jorge, Serginho Trombone e Paulinho Guitarra não ficavam atrás no troca-troca. Foi nesse esquema que os dois volumes de Tim Maia Racional foram gravados.
Com capas diferenciadas apenas pelo numero do volume do disco, tem o primeiro que é um trabalho autoral de Tim, com músicas intercaladas por vinhetas, narrativas e louvores, e é esse album que esta as maiores riquezas do Sindico, como o clássico "Imunização racional (Que beleza)”, a qual Marisa Monte quis regravar, e acabou ouvindo um pedido do próprio Tim para que desistisse da idéia, mas fora gravado posteriormente por Gal Costa, que provavelmente não consultara o cantor. Outra muito lembrada é “Bom senso”, a minha preferida do trabalho, além do samba-soul “Universo em desencanto”, dentre vários petardos geniais.
No volume dois, a qualidade das faixas também é extraordinária, mas já continha composições de outras pessoas, além parcerias com seus amigos, como a balada “O dever de fazer propaganda deste conhecimento” de Robson Jorge, "Cultura Racional" de Beto Cajueiro, entre várias outras músicas de qualidade inquestionável.
No terceiro volume, que já circulava piratamente pelas internets, foi remasterizado e resgatado pela editora Abril em uma coleção de 15 fascículos que traz a obra completa do cantor, com uma qualidade soberba, e lançado décadas após sua concepção. Com a mesma pegada do louvor cósmico, Tim nos brinda com canções excelentes como o funk ''You Gotta Be Racional'', a rumba africana ''Que Legal'', e a qual mais gosto ¨´E preciso ler e reler", uma baladinha que abre o play. São seis canções de variações musicais, que nos remete a pegada do Volume 2, e com Tim Maia em sua melhor forma nessa fase, com uma performance vocal destruidora, é um disco imperdível.
Os dois primeiros volumes foram prensados em forma de LPs Tim Maia Racional, lançados em 1975 e 1976 respectivamente, e teve os lucros revertidos a Cultura Racional, e por ser independente (lançados pela própria gravadora de Tim Maia), chegavam às lojas pelas mãos dos próprios músico, acompanhado de um livro explicando a cultura racional. Esses discos rivalizavam com os discos anteriores do próprio autor, e também causava certo susto, pois tentava catequizar seu público, o que inviava a execução nas rádios e nas emissoras de TV. Esse problema em arrumar espaço na mídia, várias brigas e processos judiciais, associados a pesada crítica e massacre dos albums, fizeram Tim Maia se afundar em dívidas. Seu público antigo não tinha saco para shows de pregação também se afastaram piorando ainda mais a situação.
Tal situação insustentável, fez que Tim deixasse a seita em 1975, brigado com “seu” Manoel por motivos, além dos desconhecidos, financeiros e atolado em dívidas. Tinha passado um ano dando uma de garoto propaganda para difundir tal cultura, perdendo muito dinheiro, e uma das suas primeiras atitudes foi voltar a ser o velho e bom Tim Maia, dessa vez atacando Manuel, acusando-o de vender milhões de livros às suas custas, além de acusá-lo de ser o “maior estuprador de Nova Iguaçu”, graças a uma espécie de Viagra natural chamado guiné-tabu, que Manoel Jacinto consumiria avidamente. Depois de toda a merda feita, a volta iminente ao uso de drogas pesadas, nosso Síndico voltou a ativa do zero, sempre com a idéia da independência musical, mas o desenrolar de sua carreira até sua morte em 1998 é assunto pra outro post.
Essa fase, tirando a parte de pregação, é a mais rica musicalmente da carreira de Tim, sendo perfeita em todos os arranjos, um ápice vocal, mostrando toda a loucura e revertendo em música toda a genialidade de um grupo de pessoas iluminadas. Apesar de ser totalmente renegada e marginalizada pelo próprio autor, não deve ser ignorada em hipótese alguma pelos fãs da ótima musica. Está aqui então talvez a fase mais obscura da música popular brasileira, e a que tem maior qualidade, um verdadeiro tesouro que eu não poderia deixar morrer. Indispensável.
Por |
Renato Nagano